O poder atrativo do fogo
Numa noite escura no princípio do Inverno, num parque nacional, vi fogueiras bruxuleantes junto de cada tenda. Eram fogueiras pequenas mas intensas que arremessavam chispas por entre as árvores e «ladravam» como terriers furiosos às canelas dos campistas.
À roda delas, as pessoas aqueciam-se com as mãos em concha e conversavam, olhando as chamas. No Verão, o parque de campismo estaria cheio de música amplificada e do ruído dos geradores produzindo calor, luz e barulho.
Mas ali não havia música enlatada nem o brilho cinzento da televisão. As pessoas estavam banhadas pela luz amarela e reconfortante da fogueira, em paz umas com as outras e com a noite. Tinham vindo para a montanha para este ritual de fogo, sonho e histórias partilhadas, Tinham vindo pela fragrância do fumo da madeira queimada e pelo seu calor sagrado.
O ser humano sempre se interrogou sobre o fogo. Os povos primitivos situavam-no nas origens da Natureza, crendo que algum antepassado o roubara aos deuses. Continuamos ainda a aproximar-nos do fogo com uma devoção quase religiosa. Escolhemos cuidadosamente a madeira.
Colocamo-la segundo regras precisas. Talvez um tronco de ácer novo no fundo da fogueira, para queimar lentamente e aguentar os outros troncos ao longo da noite. Os gravetos são cuidadosamente colocados em pilhas ou sobre papel de jornal amassado ou pinhas. O freixo, o vidoeiro amarelo e o carvalho ficam no cimo da pirâmide, talvez com um galho de macieira para dar aroma. E um ritual tão rígido como o da comunhão. Quem acende a fogueira é como um sacerdote e quem ousar mexer no seu fogo comete um sacrilégio.
Somos meticulosos e ritualistas porque o fogo exerce um poder invulgar sobre as nossas mentes. O fogo é um estímulo forte para os sonhos e a poesia, as coisas que fazem de nós seres humanos, mas estão muitas vezes arredadas do nosso espírito por causa da nossa avidez de riqueza e de poder. O fogo liberta-nos da prisão dos acontecimentos e abre as portas dos sentidos. Olhamos para os troncos queimados, onde as chamas dançam em tons de azul e a madeira se vai transformando magicamente em luz e fumo. As pálpebras começam a pesar-nos enquanto observamos a translucidez palpitante das brasas.
Talvez as nossas mentes estejam adaptadas ao fogo do mesmo modo que os nossos olhos estão calibra dos para o sol. Quando a fogueira se inflama, sentimos algo de familiar e ancestral. O ensaísta inglês E. V. Lucas escreveu: «O fumo de uma fogueira ao ar livre está carregado de recordações. Uma baforada, e por um momento fugaz estamos em ligação com os nossos antepassados mais recuados e tudo o que é elementar e primitivo em nós desperta.»
Não o primitivo selvagem, o medo dos animais na noite, mas o primitivo de sonho e de companheirismo. O calor de uma fogueira é extraordinariamente semelhante ao calor do amor e faz-nos pensar nas nossas ligações com os outros. Ao fixar as chamas de uma fogueira de Inverno, perdemos a noção do dia. É difícil ser-se crítico ou altivo ao pé de uma fogueira. As fogueiras são propícias ao romance, à amizade, à conversa e às canções. «Os conselhos mais sensatos são dados junto ao fogo», escreveu Lucas. «A simpatia e a com preensão mais afectivas tornam-se então explícitas.»
Foi ao redor da fogueira que as famílias se reuniram, que a Humanidade aperfeiçoou a fala, criou canções e explorou os mistérios. Foi ao redor do fogo que os nossos antepassados ofereceram os seus sacrifícios aos deuses, e o fumo que elevava as preces para os céus estabelecia a ligação entre a religião e a atmosfera doméstica.
Essa ligação entre fogo e fé quebrou-se nos tempos modernos. A ruptura começou quando os alquimistas medievais, tentando transmutar os metais não preciosos em ouro, acenderam o fogo dentro das fornalhas, onde já não conseguiam sentir o seu fascínio e a sua sensualidade.
Em meados do século XIX, as fogueiras domésticas começaram também a ser fechadas. Um fogão de sala conservava mais tempo o calor num aposento e perdia menos calor pela chaminé. Dos fogões, os homens passaram às fornalhas e às caldeiras.
O fogo perdeu o seu poder hipnótico. «Quem consegue ser espirituoso, quem pode ser humano diante de um fogão a gás?», lamenta-se Lucas. «Pouco diz ao olhar e nada à imaginação.» No seu livro In the Image of Fire, o religioso erudito David M. Knipe escreve sobre um amigo que acreditava que «a destruição da sensibilidade na vida moderna se devia largamente à ausência das fogueiras abertas nas casas. Os lares sem lareiras não têm «centro«, nem um ponto para onde olhar em busca daquela fantasia tão essencial a cada ser humano».
À medida que fomos deixando de acender as lareiras, adoptámos substitutos deprimentes: o tronco de cerâmica que oculta muito bem a chama do gás, a lareira de lajes de imitação e de celulóide, iluminada por detrás por lâmpadas eléctricas acinzentadas. Mas ainda que remos olhar para as chamas.
Talvez que a atenção talhada nos nossos espíritos por milénios passados a fixar o fogo seja o que nos mantém ociosamente, horas a fio, presos ao écran da televisão. Um produtor de software investiu nesta ideia e criou uma lareira em vídeo. Basta introduzir uma cassete no gravador de vídeo e ficar enroscado junto a uma fogueira que crepita no écran da televisão! Não há fumo. Nem cinzas. Nem calor, tão-pouco.
Mas o fogo jamais deixará de exercer a sua atracção naqueles de nós que buscamos o seu fulgor contemplativo. E descobrimos por entre as suas chamas dançantes uma renovação da nossa fé nos outros.
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